Esta entrevista faz parte de conversas com o artista brasileiro Fábio Carvalho que, no dia 8 de fevereiro de 2015 partiu para Lisboa para dar início ao projeto que chamou de Residência Artística HS13rc – uma iniciativa desvinculada de qualquer instituição, pensada e articulada por ele sob o mote “o artista não depende da instituição, o artista É A INSTITUIÇÃO”.
Momento I: A chegada
Maykson Cardoso: Outro dia conversava com um artista estrangeiro que se dizia estarrecido por ter percebido que a maioria dos artistas que conheceu por aqui se angustia com o fato de não ter a chancela de instituições para a realização de seus trabalhos. Foi interessante ouvi-lo e, em alguma medida, estou de acordo com ele. Ainda que não possamos obliterar o fenômeno dos coletivos de artistas que pululam, no Brasil e no exterior, com o propósito de colocar em xeque essa institucionalização, de criar, de fato, espaços alternativos que possam acolher ações artísticas das mais diversas. No entanto, a Residência HS13rc, enquanto uma iniciativa individual, isto é, que diz respeito apenas ao seu processo criativo, à sua produção e a recepção dela pelo público, nos aponta algo que aprendemos com Helio Oiticica e Lygia Clark, mas que parece ter sido esquecido: o que o artista PODE, ele mesmo, única e exclusivamente a partir dos materiais e meios que tem disponível... Enfim, acho que poderíamos começar a nossa conversa por aí...
Fábio Carvalho: Isso é uma questão que me interessa profundamente. Não sei se é uma questão geracional, pois quando comecei, nos anos 1990, não havia praticamente nada! Era o período pós-Collor, todas as instituições públicas e privadas estavam quebradas. Quase nenhuma galeria comercial ainda funcionava a contento. A inflação de centros culturais ainda não havia começado. Quase não aconteciam exposições. Jamais se imaginaria, naquela época, uma feira de arte no Brasil, quanto mais duas, de peso.
Para quem estava começando então, a coisa era ainda pior, e a saída eram os salões de arte, que se multiplicaram naquela década, e as mostras de levantamento da produção emergente, como o Projeto Macunaíma, Antárctica Artes, entre outras. Uma coisa bastante comum, e nos primeiros anos da década de 2000, era ver artistas iniciantes e mesmo veteranos se juntando em grupos para produzir as suas próprias exposições, em espaços “oficiais” ou não. E tivemos exposições incríveis assim, e que são até hoje lembradas, como a série Orlândia, Nova Orlândia e Grande Orlândia, organizadas pela saudosa Márcia X e Ricardo Ventura.
E agora, em um movimento que já dura mais de 10 anos, multiplicaram-se as galerias comerciais, inclusive galerias estrangeiras que se aportaram no Brasil; além das feiras de porte internacional, temos os centros culturais que, depois de uma multiplicação excessiva e posterior amadurecimento e “filtragem”, se tornaram instituições poderosas; as bienais também se multiplicaram. Temos agora tantas exposições que em noites de abertura, muitas vezes, é preciso abrir mão de algumas. É por isso, talvez, que os artistas tenham sentido que era a hora de aproveitar mais a maré institucional, pois realmente dá muito trabalho e muita canseira, fora o grande peso financeiro, produzir eventos independentes, ainda mais agora que tudo em nosso país ficou caríssimo. Não acho essa postura errada. As instituições são importantes e, algumas delas, fundamentais. É preciso que existam, para que haja um sistema de arte sólido. A questão é: elas não podem ser o único horizonte possível. Eu vejo muito artista iniciante que, depois de ter passado dois ou três anos em escolas de arte, não conseguem pensar em nada além de fazer parte do elenco de uma galeria, participar das feiras e se aproximar de curadores, de agentes, “badalados”.
MC: É interessante esse panorama que você apresenta. De fato, um “sistema oficial” de arte contemporânea no Brasil só muito recentemente vem se profissionalizando, o que culmina no surgimento de outras instituições, para além dos grandes museus...
FC: Exato. O que quero dizer com tudo isso é que, em torno desse “sistema oficial”, pode e DEVE existir também uma cena mais independente, com movimentos que partam da iniciativa coletiva ou individual dos artistas. Estes movimentos acontecem ainda, não tanto como antes, mas deveria haver muito mais. E não apenas iniciativas de artistas buscando um lugar ao sol, mas de todos! Artistas veteranos também deveriam bancar ações independentes e fora do crivo institucional oficial. O Oiticica e a Lygia lá ficaram esperando que algum curador ou instituição lhes “autorizasse” a fazer qualquer uma das coisas que fizeram? Iniciativas que partam inteiramente dos próprios artistas são necessárias para renovar a cena artística, pois geralmente a paisagem oficial é um pouco fechada, viciada, tende a repetir nomes e temas. Os artistas TÊM QUE apontar novos caminhos, indicar as novas questões...
MC: E, bom, no bojo deste seu projeto, já estão claras as suas intenções, o seu grito de “Ei, pessoal, o artista deve ter autonomia”!
FC: Recentemente lancei a seguinte provocação, quando comecei a elaborar o projeto da Residência Artística HS13rc: “o artista não depende da instituição, o artista É A INSTITUIÇÃO”. E realmente acredito nisso! Mas estamos todos demasiadamente submissos, esperando a aprovação do curador do momento, e da acolhida pela galeria poderosa. Nos últimos anos participei de várias residências artísticas “oficiais”, algumas com orçamentos poderosos. Mas muitas vezes são justamente estas, que por um lado oferecem muita infraestrutura e conforto que, por outro, nos cerceiam com várias exigências, várias restrições.
MC: Entendo, este insight é mesmo interessante. É preciso que o artista faça, da potência, um ato. Em que momento isso ficou mais claro para você e permitiu que você pensasse na residência?
FC: um dia vi um artista publicar fotos de uma ação que era totalmente sem suporte institucional. Simplesmente o cara foi lá, ocupou temporariamente um local público, fez seu trabalho, produziu suas obras, realizou várias ações, registrou tudo, e decidiu que aquilo era SIM uma residência artística. E eu pensei “BRAVO! É isso mesmo! Ele está certíssimo!” O princípio de uma residência artística como uma experiência realizada longe de sua casa/atelier, fora da sua zona de conforto e costume estava lá. Ele lidou com questões específicas daquele local/experiência. Daí começou o processo da Residência Artística HS13rc, que não nasceu da carência de oportunidades, pois nos últimos 4 anos participei de 6 residências artísticas “oficiais” em Portugal, mas sim do desejo de poder fazer algo que não fosse balizado por nada ou ninguém, além da minha própria vontade. Ano passado já havia realizado uma intervenção urbana em Lisboa por conta própria, sem aprovação ou apoio de ninguém, mas este ano resolvi fazer algo de maior porte, não apenas uma intervenção urbana, mas uma verdadeira residência artística, de onde estão saindo vários trabalhos e ações, de caráter totalmente independente. E como uma provocação, eu decidi que o projeto teria um “nome institucional”, um programa/apresentação, onde estão listadas as propostas da residência, que tudo seria documentado, haveria um site/blog, etc. É um pacote completo, justamente para mostrar que é possível se pensar a produção e veiculação artística além das instituições oficiais. Pode soar um pouco romântico ou anacrônico em uma época tão pragmática, mas foi o que desejei fazer agora. |