Bruna Riboldi: Primeiro, gostava de entender melhor como surgiu a ideia do projeto. Os azulejos em falta nos prédios era algo que lhe fazia confusão/causava desconforto? o que motivou a intervenção justamente com os azulejos?
Fábio Carvalho: Há alguns anos uso em meu trabalho padrões decorativos de louça de mesa, bem como peças de louça (faiança e porcelana), e até fiz algumas visitas a fábricas de faiança e porcelana aqui no Brasil. Então eu já não estava muito longe da cerâmica. Em 2009 participei de um projeto de arqueologia limpando e separando fragmentos de azulejos do século XIX pelo padrão decorativo, oriundos de escavações aqui no Rio de Janeiro. Foram muitos meses com a cara enfiada em milhares de cacos de azulejos. Durante este trabalho houve visitas a igrejas antigas e ao Museu do Açude, que tem um acervo impressionante de azulejos, telhões de faiança e cerâmica decorativa (urnas, pinhas, estatuária, etc.). Aí certamente surgiu o embrião do meu interesse pela azulejaria antiga.
Em 2011 estive em Portugal para minha primeira residência artística no país (Bordallianos do Brasil), e foi quando eu me tornei por completo num apaixonado pela cultura portuguesa em geral, e pela cerâmica e azulejos antigos em particular, tendo até iniciado naquele ano um projeto paralelo de levantamento dos azulejos antigos aqui no Rio de Janeiro (azulejosantigosrj.blogspot.com.br). Foi nesta primeira viagem a Portugal que comecei uma imensa coleção de fotos de fachadas e de pormenores de azulejaria em Portugal. Para minha felicidade, tenho retornado anualmente a Portugal desde então, para residências artísticas e exposições, de forma que meu interesse pela azulejaria só fez aprofundar, e a coleção de fotos aumentar. Já são mais de 5 mil fotos!
Uma parte significativa desta coleção são fotos de fachadas azulejares com lacunas, algumas enormes, muitas vezes em péssimo estado, algo que me entristece demais, pois são a face explícita de dois problemas muito sérios: a falta de conservação dos imóveis, e o roubo de azulejos para venda em feiras e antiquários, ambos problemas que também acontece aqui no Brasil em todas as cidades que possuem fachadas azulejadas, como Rio de Janeiro, Salvador, Belém, São Luís, etc.
Outra parte desta coleção são fotos de “remendos” em fachadas onde as pessoas usaram azulejos diferentes dos padrões originais, que mesmo não sendo o ideal, cria em alguns casos umas colchas de retalhos fantásticas!
Quando cheguei em Lisboa para mais esta residência artística não tinha qualquer projeto pré elaborado, apenas o desejo de repetir algo nos moldes do que havia feito ano passado, com a intervenção urbana Migração Monarca. Mas logo nos primeiros dias, quando fazia mais fotos de azulejos e remendos, me ocorreu que poderia tentar algo com isso. Por estes dias eu estava fazendo também pesquisa de material em retrosarias para uma nova peça da série “Delicado Desejo” que são armas de fogo feitas com rendas, e resolvi juntar as duas coisas, criar um padrão de azulejos a partir das fotos destas armas de rendas.
BR: quanto tempo você esteve em Lisboa para este projeto? em quais datas precisamente foi feita a intervenção?
FC: Estive em Lisboa por 40 dias, mas a intervenção aconteceu por 35 destes dias, de 12/2 até 18/3.
BR: os prédios que receberam os azulejos foram mapeados anteriormente ou encontrados "ao acaso"?
FC: Um pouco de ambos. De forma geral, os prédios foram encontrados de dia, tanto quando saía propositalmente para fazer a prospecção de possíveis locais para a intervenção, quanto quando saía à rua para afazeres diários comuns. Quando encontrava “candidatos”, eu os fotografava ainda sem a intervenção, e os marcava em um mapa para poder reencontrá-los depois. Porém, houve vezes, principalmente nas duas semanas finais do projeto, em que eu saía para alguma área da cidade já levando comigo azulejos de papel e a cola de amido, e quando encontrava uma fachada que poderia ser intervencionada, o fazia de imediato.
APOSTO n° 38 - antes e depois da intervenção
BR: quais são os locais exatos onde estão os prédios onde foi realizada a intervenção?
FC: A maioria das intervenções aconteceu em Penha de França e Anjos, pois eu estava hospedado nesta região, mas há muitos também na Graça, e mais alguns pelo Bairro Alto, Baixa, São Cristóvão e Madalena. Os mapas com as localizações exatas de cada uma das intervenções encontram-se neste link >>.
BR: há uma estimativa do número de azulejos "instalados"?
FC: Usei um pouco mais de 300 azulejos de papel.
BR: quantos foram os padrões de azulejos criados? foram criados antecipadamente, ou após conhecer o local das instalações?
FC: Eu criei 3 padrões no total, porém originalmente havia pensando em apenas um padrão, que eu criei a partir de um conceito muito comum na azulejaria portuguesa, no qual a partir de apenas uma mesma unidade, você chega a um desenho maior, combinando de 4 a 8 azulejos, apenas com a rotação dos azulejos.
Primeiro padrão criado para a intervanção - APOSTO n° 5
Mas logo me deparei com situações onde este padrão não se ajustaria bem, então criei o segundo padrão, para dialogar melhor com fachadas onde o desenho já está completo com apenas um azulejo, que foi usado em várias fachadas, como no exemplo abaixo (foi justamente ao me deparar com esta fachada com uma enorme falta que veio a vontade de criar).
Segundo padrão criado para a intervanção - APOSTO n° 14
Por fim, eu criei o terceiro padrão, exclusivamente para uma única fachada, pois esta apresenta um desenho bem menos comum em Lisboa, de um padrão que é composto por 2 azulejos diferentes, que juntos foram um motivo em linhas diagonais. Para este terceiro padrão eu igualmente criei 2 desenhos diferentes que se complementam e juntos ecoam e se integram ao motivo original.
Terceiro padrão criado para a intervanção - APOSTO n° 10
BR: Sobre a reação das pessoas e da cidade -- você esteve em Lisboa por algum tempo para acompanhar a repercussão? Como foi?
FC: Eu pude acompanhar um pouco da repercussão quando ainda estava em Lisboa, às vezes até imediatamente! Como por exemplo quando moradores dos prédios viam a intervenção logo após eu a ter executado. O curioso é que em alguns destes casos eu vi debates acalorados, mas nunca alguém os arrancou das paredes. Houve também casos de pessoas que me abordaram enquanto eu ainda colava os azulejos, e tive conversas ótimas com estas pessoas. Numa das vezes um rapaz lamentou que seu prédio não tivesse azulejos na fachada, pois ele gostaria que eu lá fizesse a intervenção! Interessante que nunca houve qualquer abordagem negativa.
Visita guiada promovida pela Casa da América Latina com diplomatas. (foto Rodrigo Vila)
Com as visitas guiadas promovidas pela Casa da América Latina eu pude ouvir comentários muito interessantes dos participantes das visitas. Vi também fotos e comentários no facebook e instagram, tanto de pessoas que compartilharam as minhas fotos, ou publicaram as suas próprias, o que continuo a acompanhar, pois a maior parte das intervenções ainda está pelas paredes, e vão continuar por lá enquanto as pessoas e as intempéries deixarem. E claro, há também a repercussão na mídia, tanto impressa como digital, mas principalmente nesta última, que foi muito além e muito maior do que eu poderia imaginar!
BR: você não teve receio de ter algum tipo de reação negativa por parte da câmara municipal, por exemplo? de o projeto ser mal interpretado?
FC: Tive muito receio! O tempo todo! Poderiam considerar o que eu fazia vandalismo. Passava na minha cabeça o tempo todo a imagem da minha deportação, ou então prisão, multa, tudo! Eu fiz o projeto sem pedir qualquer tipo de permissão, justamente pois queria que fosse algo que surgisse nas paredes sem nenhum tipo de aviso prévio, que fosse algo que pegasse as pessoas de surpresa. A maior parte das intervenções foi feita de madrugada. Mas felizmente antes de promover as visitas guiadas, a Casa da América Latina fez uma consulta à câmara municipal, que disse que não havia nada de ilegal ou criminoso no que eu fazia, e depois de sabê-lo eu passei a me sentir mais tranquilo na execução do projeto.
BR: fale um pouco mais sobre o interesse pela intervenção urbana e este amor por Lisboa.
Migração Monarca - Lisboa - 2014
FC: A primeira intervenção urbana que fiz em Lisboa, ano passado (Migração Monarca >>), aconteceu em paralelo a uma exposição que fiz no Rio de Janeiro, para a qual originalmente criei as bandeirinhas de papel de seda com os meus soldados “Monarcas” [veja neste link >>], uma vez que a proposta do curador da exposição, Marco Antonio Teobaldo, era justamente trabalhos efêmeros em papel de seda. A ideia de fazer bandeirinhas veio do fato desta exposição acontecer em junho, mês das nossas “festas juninas” que correspondem às festas dos santos populares em Lisboa, e as bandeirinhas de papel de seda colorido são a decoração mais característica das nossas festas juninas.
visita guiada à intervenção APOSTO com o curador Marco Antonio Teobaldo
Então daí foi um passo natural levar as minhas bandeirinhas para Lisboa, para misturá-las na decoração da festa dos santos populares, pois eu iria passar exatamente o mês de junho em Portugal, numa residência artística na Cerâmica São Bernardo, em Alcobaça. O nome, “Migração Monarca”, tem a ver com isso, a transposição de algo que nasceu no Rio de Janeiro e “voa” até Lisboa, como as borboletas monarcas, que são as únicas borboletas migratórias, que nascem no norte da África e migram até o Algarve, e justamente no início do verão, como eu estava para fazer. 2014 foi o ano em que se comemorou 40 anos do 25 de abril (soldados com asas vermelhas!); o tema das festas foi a "Peregrinação", livro de Fernão Mendes Pinto, que completou 400 anos da sua publicação... tudo parecia conspirar a meu favor!
Migração Monarca - Lisboa - 2014
O amor por Portugal de uma forma ampla, e por Lisboa em particular, se deu desta identificação imediata com a cultura lusitana que comentei antes, com a dinâmica das cidades, o ritmo de vida, o jeito das pessoas, com o qual eu não apenas me identifiquei, mas no qual me reconheci. Eu senti um imediato conforto, me senti mesmo em casa, como se retornasse à casa. Não deve ser algo tão incomum para um carioca, descendente de portugueses por todos os lados, mesmo que já bem lá para trás, tenho em minha família Carvalhos, Souzas, Rochas, Cardosos... Mas talvez para um carioca de alma mais melancólica e contemplativa, do que solar e festiva, e que ainda mais é filho de um professor universitário de cultura e literatura portuguesa, isso fosse algo inevitável, apenas esperando para acontecer. |